quarta-feira, 9 de abril de 2008

Abdias, de Cyro dos Anjos




(São Paulo: Globo, 2008. 232 páginas)

Com dois anos de atraso, chegou recentemente às livrarias a reedição de Abdias, de Cyro dos Anjos. Digo atraso porque a publicação comemora o centenário de nascimento do autor mineiro, completado em 2006. Enfim, a data é o que menos importa. O livro, publicado pela primeira vez em 1945, é um relato em forma de diário de um professor de literatura que se vê às voltas de uma paixão (não daquelas paixonites passageiras, mas das que doem e não cessam) por uma aluna de um tradicional colégio de freiras, em Belo Horizonte do final dos anos 1930. Além de todo provincianismo típico da época, o professor quarentão enfrenta seus próprios conflitos, dividido entre a vida de homem casado e com filhos e o desejo de aventura; entre a segurança e o equilíbrio da maturidade e a fuga e a ilusão da juventude.


A partir do personagem-narrador erudito e intelectualizado, o autor envereda por uma escrita clássica, à maneira de Machado, mas docemente contaminada pelas experimentações modernistas. Entre devaneios e revelações, o leitor é testemunha (única, aliás!) dos estados de alma de um homem sensível, absolutamente paralisado diante suas escolhas. Em alguns momentos, chega a ser penoso, diria até constrangedor ler as confissões. Mas, assim como há de ser quando (raríssimo) lemos um diário alheio, em que pese a sensação de invasor, não se larga até que chegue a última página.

Recortes
“Nada de dramatizações. Quero ser de uma sinceridade total. Não me julgo um monstro. Vou mesmo além. Acredito que todos os homens são mais ou menos assim e que a alma humana é um campo de batalha, um mar de contradições. Que nos condenem pelos atos, se por algo devemos ser condenados, e não pelos pensamentos. Aqueles, afinal, podem representar o fruto amadurecido de uma longa gestação do espírito, ao passo que estes muitas vezes não são mais que o lodo da alma revolta.” (p. 101)


“Servidão de amor, a mais melancólica das servidões. Por que há de o homem escravizar-se a vãs formas que o tempo dissolve? O amor nada tem da essência de Ariel. É Calibã, que rasteja, embriagado.” (p. 129)


“Exerço, no mundo das letras, atividade modesta. Não sendo um criador, minha função é a das muitas formigas que sem cessar carreiam para o celeiro literário os frutos quase anônimos do seu trabalho: um estudo subsidiário, uma pesquisa, pequeno ensaio crítico.” (p. 162)

terça-feira, 8 de abril de 2008

Shakespeare & Co.






Passei bem menos tempo do que gostaria lá dentro, principalmente porque minha alergia não me daria sossego entre estantes empoeiradas e sofás que cheiram a pêlo de gato. A Shakespeare & Co. é mesmo um monumento contra todo e qualquer suspiro de mundo moderno. Difícil imaginar como se mantém firme e forte (verdade que não é a original, fechada pelos nazistas em 1941. Estamos falando da casa aberta em 1951 pelo excêntrico George Whitman), sem se dar conta que lá fora é época de livrarias ultramodernas, onde livros que não figuram na lista dos mais vendidos têm sobrevida, e logo estarão fadados ao catálogo virtual. Ainda hoje, dizem, a livraria dá abrigo a escritores estrangeiros, publicados ou não.
Qualquer um pode fazer uso dos sofás, dos livros e das máquinas de escrever (!) pelo tempo que precisar. O andar de baixo até que lembra uma livraria convencional, com lançamentos, uma ótima seção de livros de arte e um caixa. Subir as escadas, no entanto, é como voltar no tempo. Não há caixa-registradora, alarmes anti-roubo, nem atendentes. Os livros estão ali, empilhados. Parece a mesma casa de Sylvia Beach (a mesma que editou Ulisses, de James Joyce). Aliás, foi na livraria que o escritor irlandês encontrou refúgio quando toda Inglaterra o acusava de ofender os bons costumes ingleses. Não só ele. A Shakespeare & Co. foi abrigo de André Gide, Paul Valéry, Hemingway, Walt Whitman, E. Allan Poe, Oscar Wilde, só para citar alguns. Normal, portanto, que o lugar guarde uma atmosfera especial, densa, misteriosa, como se algo estivesse sendo tramado nesse exato momento em algum dos cantos mal iluminados, quem sabe um grande livro!


Quando estiver em Paris: a Shakespeare & Co. fica no número 37 da Rue de La Bûcherie, bem ao lado da Notre Dame, metrô: Cité.

"Um lugar quente e amistoso, com uma grande estufa no inverno, mesas e prateleiras com livros, novos títulos na vitrine e, nas paredes, fotografias de escritores famosos, vivos e mortos." (Hemingway)