sexta-feira, 27 de junho de 2008

Guimarães para os sentidos


Post curtinho, mas imprescindível. Hoje, Guimarães Rosa completaria 100 anos. E eu sou completamente encantada por seu legado. Acho mesmo que de sua pena saíram alguns dos textos mais incríveis da literatura universal. O que Guimarães Rosa conseguiu fazer, em termos de performance com a palavra, não conheço que tenha conseguido melhor, muito menos igual. E como esse é um blog de dicas de leitura, indico um conto específico: “Meu tio o Iauaretê”, publicado na revista Senhor em março de 1961 e facilmente localizável na internet. Talvez você tenha tido a sorte (eu não tive) de assistir a performance desse texto, feita pelo inesquecível Paulo Autran, se não me engano em um dos teatros do Sesc em São Paulo.

O texto apresenta um narrador que é um profundo conhecedor dos hábitos das onças, e os descreve com tantos detalhes capaz de despertar no leitor sentidos que vão além da audição e da visão. Sim, lendo sentimos o cheiro do sangue, o frio na espinha comum a quem pressente o perigo. É pura magia. E ainda tem o efeito álcool, que contribui na perda dos sentidos lógicos do narrador, até o desfecho mais que singular, surpreendente, como um ataque mortal do bicho-homem. Enfim, vale a leitura. Mas nem adianta ler correndo, não. Esse é para ler com calma, em silêncio, sentindo o bafo do bicho.
Bom, é esse o meu Guimarães preferido do momento. E o seu?
p.s.: dedico esse post a Gisele e Sandro, colegas de mestrado que muito me ensinaram de Guimarães. Saudades de nossos papos sobre literatura no café da PUC!

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Agora também no UOL

Gente, novidade das boas.
A partir dessa semana, passo a assinar uma resenha quinzenal no UOL. Serão só lançamentos e estou inteiramente aberta a sugestões, claro. Queria, inclusive, agradecer a Patrícia Decia por ter indicado meu nome. Serei eternamente grata quando virar cliente gold da Livraria Cultura!
A resenha de estréia é de “Mundo Animal e Outros Contos", de Antonio Di Benedetto. Esse livro tem uma história legal. É que comprei na primeira manhã pós-mestrado finalizado. Corri na Livraria da Vila e me dei ao luxo de me deter na estante de lançamentos (como não fazia há dois anos e meio). Claro, o título me chamou (ainda mais com a cabeça osmaniana que estava) e não me arrependi. Leiam mais no:
http://diversao.uol.com.br/ultnot/livros/resenhas/2008/06/22/ult5668u27.jhtm

sábado, 21 de junho de 2008

Não é melhor nunca que tarde?




Ganhar presente é bom. Agora, ganhar um presente que nos emociona, que é a nossa cara e que nos faz derramar uma lágrima doce a cada virada de página, é melhor que bom. É como se aquela pessoa dissesse, em palavras não ditas, “eu conheço você melhor que imagina e posso perfeitamente tocar seu coração!” Foi assim que me senti quando ganhei, coisa de duas semanas atrás, a linda nova edição de “Livro das Perguntas”, de Pablo Neruda (São Paulo: Cosac Naify, 2007). Que edição irrepreensível! Aliás, a Cosac Naify ganhou definitivamente minha admiração. Como comentei dia desses com amigos, pode até ser que esteja redondamente enganada, mas a impressão que dá é que lá se trabalha sem aquele cifrão mágico como ponto de partida e de chegada. Melhor de tudo é que, ao que parece, anda tudo bem com as contas da editora! Sinal que quem compra livro reconhece, sim, um trabalho de qualidade a quilômetros!

Enfim, voltando ao presente, “Livro das Perguntas” foi um dos primeiros lançamentos póstumos do poeta chileno, escrito em seu último ano de vida e publicado pela primeira vez em 1974. Essa edição tem a tradução sensível de Ferreira Gullar e a ilustração singular de Isidro Ferrer, artista plástico espanhol. Nem sei se a palavra certa para descrever o trabalho de Ferrer é ilustração. São mais bem cenários surreais, feitos com colagens, fotografias, instalações em madeira e uma linguagem própria. Não ilustra propriamente o texto, mas o incorpora e o transforma em outra forma de questionar o mundo.

Há inúmeras teses que tentam explicar o que fez Neruda elaborar mais de 200 perguntas. Uns dizem que foi a forma que ele encontrou para expressar a admiração no encontro de dois “eus”: o do menino curioso com as descobertas e do adulto versado. Outros falam do poeta que elabora suas inspirações mais primitivas, anteriores até mesmo à própria infância. Há quem acentue a influência da filosofia oriental. O “Livro de Jó” também parece modelo.

Eu vejo o livro como resultado de tudo isso, e de mais alguma coisa. Leio ali a inquietude que deve cercar as pessoas sensíveis quando a morte se avizinha. Leio um sopro de nostalgia da ignorância e um tanto de prazer em se alcançar a lucidez. São perguntas sobre vida, morte, natureza, homem – temas que cercam qualquer mortal, mais ainda os que, como Neruda, exercitam os sentidos da alma.

No Chile, algumas edições introduziram respostas dadas por crianças. Ao que parece, até uma emissora de rádio fez uma campanha para eleger as melhores frases. Eu realmente dispenso essa sede de solução. Não me faz falta. Sério. Gosto de ler as perguntas sem necessariamente imaginar respostas, dando ainda mais asas à incerteza. O mundo já é tão racional, o que custar imaginar que algumas coisas simplesmente não se explicam, não se respondem?

p.s.: Quem me deu esse presente foi uma dupla incrível, que redescobri recentemente. Digo redescobri porque conheço os dois faz algum tempo, mas só esse ano a coisa pegou, digamos assim. Falo da Nina e do André. Ela é uma fofa que exala amor. Dou um doce para quem não se apaixonar pela Nina. E ele sabe tanto como levantar meu astral! Sorte poder conviver com essa dupla, todos os dias.

RECORTES
“Que coisa irrita os vulcões que cospem fogo, frio e fúria?
“As lágrimas que não choramos esperam em pequenos lagos?
Ou serão rios invisíveis que correm para a tristeza? ” (pag. VIII)

“É ruim viver sem inferno: não podemos reconstruí-lo?
E colocar o triste Nixon com a bunda sobre o braseiro?
Queimando-o a fogo lento com napalm norte-americano?” (pág. XVIII)

“Não é melhor nunca que tarde?
E por que o queijo se dispôs a realizar proezas na França?” (pág. XX)

“Amor, amor, aquele e aquela, se já não são, para onde se foram?
Ontem, ontem, disse a meus olhos, quando voltaremos a ver-nos?” (pág. XXII)

“É verdade que a tristeza é larga e estreita a melancolia?” (pág. XXIX)

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Da engrenagem ao cosmo


Pela lógica, esse deveria ter sido o post de estréia do blog. E a razão é muito simples: é o principal livro da minha vida nos últimos dois anos e meio. Foi sobre ele que me debrucei esse tempo todo, buscando relações, estabelecendo caminhos e parâmetros que me levassem à dissertação de mestrado que defendi no começo de maio, na PUC–SP. (Quem tiver interesse e paciência, ela está disponível na biblioteca da Monte Alegre e logo nos arquivos virtuais da Capes com o título: “A borboleta azul na parede de vidro: o imaginário medieval em Nove, Novena, de Osman Lins”.)

Se não me atrevi antes a escrever uma resumida crítica de “Nove, novena” (São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 211 páginas) é porque não me via capaz de fazê-lo em poucas linhas. Mas tentarei. E para ser o mais objetiva possível, assumo o superlativo sem culpa: esse é um dos melhores livros que já li na vida, mesmo.

“Nove, novena” reúne nove narrativas curtas (o próprio autor renega a classificação de contos) que têm como núcleo de abordagem a reconstrução da ligação do homem moderno ao cosmo. Cabeçudo demais? Nem tanto. O livro está ambientado (foi escrito na primeira metade dos anos 1970 e lançado em 1975) num país que assimilava a expansão desenfreada das grandes cidades, o advento da produção em massa e a promoção da indústria cultural norte-americana. Nesse meio, o homem osmaniano parece espremido, em busca do seu próprio espaço.

É das angústias do ser moderno que trata os textos de Osman Lins. Desse homem, como explica Benjamin, dividido entre “a esperança de retorno às certezas desaparecidas e o medo do futuro impessoal e fragmentado”. Mais ou menos como eu me sinto e talvez você que me lê também: paralisado entre a saudade do que não existe e a esperança nebulosa pelo que está por vir.

A genialidade do autor (pernambucano!) está na forma com que constrói o texto, trazendo alegorias tão incríveis que a gente lê e se pergunta: por que mesmo não pensei nisso antes?

Numa das narrativas que mais gosto, chamada “Noivado”, um casal de velhos noivos trava o último diálogo antes de pôr fim a uma relação acomodada que perdura há 28 anos. Mendonça é um burocrata recém-aposentado que, dias antes de deixar a repartição, se depara com o primeiro problema “mais ou menos vivo” em 30 anos de carreira: uma invasão de insetos, que vêm não se sabe de onde e rompem a vidraça do prédio. Giselda é a velha que guarda o romantismo da juventude e a esperança de que o rompimento do noivado signifique, enfim, seu resgate.

Enquanto os dois personagens se contrastam em seus dilemas, os diálogos se distanciam até que um diante do outro sequer se enxergam. Enquanto Mendonça se inquieta com seu fracasso diante do mundo real e orgânico dos insetos, Giselda acredita testemunhar a transformação do noivo em máquina, como se o corpo, enfim, assumisse a forma de engrenagem – a mesma que o fez repetir gestos e palavras por três décadas de atividade medíocre.

Com uma construção alegórica riquíssima e extrapolando a linguagem verbal (as falas das personagens são identificadas por símbolos gráficos), Osman Lins “desconcretiza” o real. Tudo está desfeito e desconfigurado. É a linguagem analógica empenhada em oferecer conhecimento sensorial da realidade. O objetivo não é a verdade, mas sim o conhecimento de mais uma (entre as tantas possíveis) possibilidade do real.

p.s.: o empurrãozinho que faltava para eu escrever esse resuminho de “Noivado” me foi dado pela queridíssima Micheliny, que comentou no post anterior que escreve no momento um artigo sobre Osman Lins. Foi ela quem o apelidou, muito propriamente, de deus. Alguém duvida?

Recortes:
“8 Duas aranhas saem da boca de Mendonça, descem pelo ombro, saltam para o chão, um grilo põe-se a cantar. Mariposas giram em torno da lâmpada. Pela janela aberta entra zumbindo uma nuvem de mosquitos. Na veneziana fechada aparece uma lagarta, gafanhotos pousam no sofá e na moldura do espelho. Na face exterior da vidraça vejo um louva-a-deus olhando-nos. Três besouros enormes irrompem zumbidores. Formigas vermelhas passam por baixo da porta, seguem em fila cerrada na direção do meu quarto. Enorme borboleta azul adeja sobre nós. Sinto na perna esquerda o rastro de uma centopéia.” (pag. 168)

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Parênteses


Parênteses para uma dica de leitura de puro prazer. Passa na banca mais perto da sua casa e compra já a edição de cinco anos de aniversário de PRAZERES DA MESA, a revista de gastronomia e vinho mais bacana do país - e onde tenho o prazer de trabalhar! Foi muito suor, muitas horas de trampo, mas o resultado valeu a pena. A revista tem 242 páginas com 72 receitas incríveis, um guia com tudo que você precisa saber para organizar festas e uma matéria bem legal que relaciona a gastronomia atual e o Movimento Antropófago. E mais um monte de bambambans das panelas como Alex Atala, Laurent Suaudeau, Gérald Passédat (o novo 3 estrelas da França), Erick Jacquin, Alain Ducasse e por ai vai.

Sugestão: aprecie com uma boa taça de Boekenhoutskloof Syrah 2005, o sul-africano destaque na degustação do mês!

domingo, 8 de junho de 2008

Imagens de Amsterdam


Não sou fotógrafa, mas desde que tive minha primeira digital, gosto de me aventurar por essa onda. Como diz meu amigo André, com uma digital, qualquer um pode fazer boas fotos! E se tem uma locação que adoro fotografar são as livrarias. O colorido dos livros, o layout dos freqüentadores, as vitrines... Tudo me fascina. Aqui, um resumo do ensaio que fiz (com a assessoria mais que essencial do Marquinhos) de livrarias em Amsterdam. Todas as fotos foram feitas entre a primeira e a segunda semana de novembro de 2007.















quarta-feira, 4 de junho de 2008

Sonho de consumo



(Divulgação - Imagem de Clarice menina, em Recife, do livro "Clarice fotobiografia", organizado por Nadia Batella Gotlib)


Ainda não comprei, mas dei uma boa folheada em “Clarice fotobiografia”, organizado por Nádia Barella Gotlib (Edusp e Imprensa Oficial, 2008: São Paulo. 652 páginas. R$ 90, mas a Cultura está vendendo por R$ 72 em Sampa). Que lindo! Sonho de consumo desde já. É a pesquisa fotobiográfica mais bacana que já vi de Clarice Lispector. Um presente para nós, discípulos e admiradores. A parte que mais me impressionou é, sem dúvida, a que apresenta as anotações premonitórias de morte, que Clarice fez no rascunho de “Um dia a menos”, um dos seus últimos contos, escrito em 1977 (pág. 445). Escreveu Clarice, em letra apressada: “Desconfio que a morte vem. Morte?”

Impressiona porque o meu Marquinhos também fez anotações premonitórias da morte. Ele me escreveu uma carta de despedida, dois meses antes de morrer, mas que só encontrei cinco dias após sua morte – minha mais valiosa herança. Acho mesmo (concordando com a minha terapeuta Angélica e com nossa professora de ioga Ana) que as pessoas sensíveis, que vivem intensamente, são sim capazes de sentir a morte se avizinhando. Mas é preciso ser mesmo muito especial para, além de senti-la, expressá-la em palavras. Salve, salve!

Clarice pra alma

(Francisco Alves Editora, 1995: Rio de Janeiro.)


A morte me reaproximou de Clarice Lispector. Aliás, Clarice vez ou outra volta em mim. Gosto de reler seus livros em momentos-chave. Impossível relacionar esses momentos entre si porque são soltos: alegres, tristes, de apreensão, de tranqüilidade, de inspiração ou vazios.

Quando pensei que livro seria capaz de me preencher nesse momento absolutamente vazio, lembrei de "A maçã no escuro" (Francisco Alves Editora, 1995: Rio de Janeiro. 321 páginas). Pensei nele porque o via como uma desafiante releitura. A primeira vez que li, confesso, não cheguei a gostar. Foi em 2003, tinha acabado de voltar pro Brasil e estava numa onda “quero ler tudo da Clarice”. Esse livro me travou. Provavelmente pelo personagem masculino, Martim. Naquela época, Clarice era para mim essencialmente uma descobridora de almas femininas e não consegui aceitar muito bem aquele homem ali, em destaque. Mesmo assim, guardei muito respeito por esse livro e sua história. Das primeiras anotações ao ponto final, Clarice se ocupou dez anos em escrevê-lo - a primeira publicação foi em 1961.

Dessa vez, foi tudo diferente e até me arrisco a dizer que “A maçã no escuro” entrou na lista dos meus preferidos de Clarice, junto com “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres”, “Paixão segundo GH” e “A bela e a fera”. Mais uma prova que livro tem hora, lugar e companhia, mesmo.

Em “A maçã no escuro”, Martim empreende uma viagem de redescoberta, tendo como ponto de partida uma fuga e como ponto de chegada, ele próprio. Parte de um estado de letargia (a construção da imagem dele em longa caminhada de olhos fechados é fascinante!) e segue pela recriação de si mesmo a partir do encontro com os elementos da natureza. Ele é um personagem masculino, é verdade, mas sua figura representa a gênese humana, reescrita a partir da busca do elevado nos sentimentos mais rasteiros, nos desejos menos nobres de todo e qualquer homem (aqui não enquanto gênero).

Seu encontro com três mulheres (Vitória, a poderosa e autoritária dona da fazenda onde ele trabalha duro em troca de hospedagem; Ermelinda, a viúva romântica e iludida com a presença do homem; e a mulata empregada da fazenda) incorpora a seus dias a tensão das relações humanas. Martim havia deixado para trás essas relações quando, imaginando ter matado a própria mulher, inicia sua fuga.

E assim o personagem segue um percurso de fuga que não idealiza o absoluto, por sabê-lo inexistente. No prefácio do livro, Lucia Helena usa uma imagem exemplar desse estado de equilíbrio instável de Martim: a de Sísifo, “que devia sempre reiniciar a subida do monte, empurrando sua pedra. Quando chegava ao topo, um deus o soprava novamente para baixo” (pág. 02). Como um Sísifo, Martim empurra sua pedra, mesmo consciente que o esforço não o levará à plenitude, e que o fim será sempre um começo.

Não há salvação. Caminhamos em círculos, se essa imagem for mais clara. Somos seres frágeis, limitados e precários – e é do equilíbrio desses três traços comuns a todos nós que consiste a salvação.

p.s.: sim, esse livro foi uma ótima companhia em Paraty!

Recortes:
“Então sentou-se numa pedra e muito teso ficou olhando. O olhar não esbarrou em nenhum obstáculo e errou num meio-dia intenso e tranqüilo. Nada o impedia de transformar a fuga numa grande viagem, e estava disposto a fruí-la. Olhava.” (pág. 24)

“Como um homem que alcança, ali estava ele exausto, sem interesse nem alegria. Estava envelhecido como se tudo o que lhe pudesse ser dado já viesse tarde demais.” (pág. 55)

Vitória era uma mulher tão poderosa como se um dia tivesse encontrado uma chave. Cuja porta, é verdade, havia anos se perdera. Mas, quando precisava, ela podia se pôr instantaneamente em contato com o velho poder. Já sem nomeá-lo, ela por dentro chamava de chave aquilo que sabia. Não se indagava mais o que tanto soubera; mas vivia disso.” (pág. 62)

E a coisa era de tal modo perfeita que até a perspectiva da distância se agregava àquela muito sem Deus. Pois quando o homem erguia os olhos – as árvores distantes eram tão altas, tão altas como uma beleza: o homem grunhia aprovando. Quanto mais estúpido, mais em face das coisas ele estava. Assim é que, aos poucos, a força de Martim foi se reconstituindo.” (pág. 78)

E um recorte que vale muito para mim:

“A dor, tão reconhecível, ficara. Mas para suportá-la fomos feitos.” (pag. 83)